sexta-feira, 2 de junho de 2006

Flores que nascem no esterco também perfumam a escuridão(*)

A racionalidade do diálogo é o caminho para evitar qualquer conflito, mas antes de mais nada é preciso que os ânimos exaltados se desarmem e tenham a capacidade de ceder alguma coisa, para que esse diálogo comece. Parece mais uma obviedade, como filosofia barata de almanaque, mas é a única coisa que me vem à mente para dizer neste momento crucial que Santarém vive, diante de um conflito sem precedentes que pode acabar em sangue.
A “guerra verde” travada entre ambientalistas e desenvolvimentistas não é nova, mas nunca havia chegado tão perto de um conflito que nos aproximasse das estatísticas de sangue do sul do Pará, onde a briga pela terra tem produzido cadáveres aos borbotões nos últimos 30 anos, com mortes de sindicalistas, de sem-terras e de religiosos.
A revelação feita através d’A Gazeta de Santarém e do Blog do Jeso (www.jesocarneiro.blogspot.com) na quarta-feira, de que uma comunidade do Orkut (site mundial de relacionamentos), criada com o intuito de execrar a presença da ONG Greenpeace em Santarém, teve adicionado um comentário de um jovem santareno de 18 anos (e que sabe-se agora, é filho de um ex-vereador local) insuflando àqueles que apóiam “o desenvolvimento de Santarém” a jogar bombas no navio da ONG se ele voltar a atracar em Santarém e – extremo dos extremos – matar ativistas ecológicos a cacetadas, nominando inclusive dois padres que lideram os protestos (Edilberto Sena e José Boeing), é extremamente preocupante.
A denúncia precisa ser apurada com rigor pelas autoridades, antes que uma irresponsabilidade ignóbil como essa tome corpo e passe a ser senso comum, deflagrando a violência que a maioria do povo santareno não quer.
O pior é que essa comunidade virtual, criada por outro jovem cuja família veio do centro-oeste no rastro do agronegócio e da instalação da Cargill, reflete a falta de um projeto desenvolvimento econômico e social condizente com a realidade sócio-ambiental da Amazônia e a ausência do Estado através de seus órgãos de fiscalização. Essa é a raiz do processo de invasão desta região, desde os anos 1970, quando foram rasgadas as duas principais rodovias da região (Santarém-Cuiabá e Transamazônica). Naquele primeiro momento, pequenos agricultores foram jogados às margens das duas estradas e deixados à mercê da própria sorte. A maioria deles acabou se integrando à nossa cultura e conseguiu conviver pacificamente com os nativos da região. A nova leva trazida no rastro do agronegócio já demonstra, inclusive através de seus filhos, que não é sua intenção se integrar conosco e sim, ocupar o nosso espaço.
Na semana passada, ao escrever nesta coluna (repercutida em meu blog na internet) que “Santarém é a Casa da mãe Joana”, onde todo mundo chega, diz e faz o que quer, senti, a partir das reações, que minha tese tem procedência. Concluí também que não existem apenas dois lados nesta questão. Além dos “contra” e dos “a favor” há uma opinião da chamada “maioria silenciosa” que ainda precisa ser ouvida. A mídia eletrônica, que a princípio parecia ter assumido o discurso de um lado apenas, tem tentado realizar debates para que cada lado exponha suas questões, mas isso ainda é pouco.
Soube que o bispo auxiliar de Santarém, Dom Severino, tem visitado pessoalmente algumas paróquias e exortado os fiéis da igreja católica a refletirem sobre o tema, criando grupos de estudos em seus bairros. Seria de bom alvitre que outras igrejas, instituições de ensino, sindicatos e quaisquer grupos organizados, também buscassem difundir a idéia de encontros e debates sobre a questão, chamando representantes das duas teses para esclarecer seus pontos de vista, e não apenas dogmatizar o tema à partir de uma visão obtusa. Isso iniciaria aquilo que afirmei no início deste artigo: a busca do diálogo, pois um incêndio não se apaga com gasolina. Sem o conhecimento, a “maioria silenciosa” continuará à mercê daqueles que querem apenas o conflito.
No início dos anos 1980, uma música foi usada por uma nova geração de estudantes que, após o período mais duro do regime militar, buscava “virar o jogo” com a participação e o diálogo necessários. “Viração” virou até nome de chapas estudantis e dizia em sua letra que “tanta falta faz teu braço, mutilado ou feito aço, traz a força da razão”. A música era um hino de animação nos moldes de “Pra não dizer que não falei de flores”, de Vandré, mas refletia o momento de distensão do regime, pós-anistia, sem perder o mesmo mote vandreniano afirmando que “sempre alerta, a hora certa é aquela que se tem na mão”.
Mas o momento mais poético daquela canção que até hoje ecoa em minha cabeça e que também remetia ao tema floral da música de Vandré, se resume a uma frase que sempre uso (inclusive parafraseado no título deste artigo) para mostrar que no meio de muitas desgraças é possível se encontrar algo de bom para mudar o cenário: “tanta flor nasce do esterco, perfumando a escuridão”.
Não precisamos de sangue para regar a flor da discórdia. Precisamos, sim, de um mínimo de racionalidade dos que se dizem lideres dos movimentos, para encontrar o caminho do diálogo.
Ele ainda é possível.
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(*) Artigo inserido em minha coluna Perípatos, que é publicada semanalmente às sextas-feiras no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará. A edição que deveria circular hoje, não chegou à Santarém, por problema de transporte, devendo ser distribuída neste sábado, conforme informou-me a editora Albanira Coelho. O artigo pôde ser lido hoje somente na edição on-line do jornal, e agoraa qui no blog.

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