terça-feira, 8 de agosto de 2006

O “patriotismo” brasileiro: entre patriotices e patriotadas(*)

Terminada a ressaca da Copa da Alemanha, quando muitos brasileiros exercitaram a velha patriotada quadrienal – e que foi interrompida pelas “meias jogadas” do Roberto Carlos e da “selecinha” de Parreira – eis que já começam a rufar novos tambores “patrióticos” em algumas escolas, prometendo atazanar nossos ouvidos até o dia sete de setembro, estendendo-se até o festival de bandas no estádio municipal.
Porque será que nosso “patriotismo” tem que ser tão barulhento e sazonal e não um orgulho que se reflita em ações do dia-a-dia pelo país que dizemos amar? Talvez seja preciso redefinirmos nosso conceito de Pátria: afinal, somos ou não somos todos filhos da Pátria?
O sentimento patriótico não deveria se resumir ao simples ato de vestir o verde-amarelo nos anos da Copa do Mundo. Nossa bandeira tem um círculo que não simboliza necessariamente a bola de futebol, porém, a excelência futebolística brasileira acabou cunhando a célebre metáfora “pátria de chuteiras”, que detona todo o arcabouço de patriotadas da patuléia em busca do tal “sentimento pátrio”, incentivado pelos “pátriocinadores” midiáticos que nos incitam a mudar o visual da vestimenta à ornamentação das ruas. E se a seleção for bem, orgulhosos, cantaremos o hino na rua, mas se os “R´s galvãobuênicos” não funcionarem (como aconteceu na última Copa), haja xingamento impatriótico...
Agora, vem aí nossa escorchante Semana da Pátria, onde voltamos a exercitar patriotices disfarçadas em “desfiles cívicos” e obrigamos nossas crianças e jovens a marchar debaixo de sol ou chuva, ajudando-os desde cedo a associar sentimento patriótico com desfile marcial. Como dizia Vandré, “nos quartéis nos ensinam antigas lições, de morrer pela Pátria ou viver sem razão”. A festejada independência do Brasil da coroa portuguesa foi transformada em data cívica de comemoração da “pátria-mãe liberta” e vem sendo comemorada há 184 anos sempre com pompa marcial, obrigando estudantes (no alto de sua rebeldia juvenil e pouco sabedores do que significa todo esse mis-en-cène) a marcharem feito soldados “cabeça-de-papel”.
Lembro-me quando criança que detestava marchar no “Dia da Raça”(que eu nem entendia o porquê da data) e uma das piores fotos que tirei era exatamente em pose marcial, no meio de alguma rua do centro de Belém, canelas finas em calça boca-de-sino e olhar aparvalhado com sorriso de Mônica! Sentimento tétrico, nada patriótico! No dia sete de setembro assistia ao desfile do Dia da Pátria, do 24° andar do edifício Manuel Pinto da Silva, onde morava, e confesso que vibrava com bandeirinhas verdes de papel na mão, entusiasmado com o nosso potencial bélico desfilando em plena presidente Vargas. Mesmo assim, não entendia aquele tal sentimento patriótico brasileiro que me forçava a desfilar como soldado!
Isso sem contar que por conviver em meio à comunidade helênica belenense que morava naquele prédio, festejava também minha outra data cívica (que ocorreu praticamente na mesma época da do Brasil), quando os gregos se libertaram de 300 anos de dominação do Império Otomano (atual Turquia). As comemorações gregas, em outubro, eram sempre mais festivas que as brasileiras (talvez porque naquela época vivêssemos sob um regime militar, que minha pouca idade conseguia perceber) e o orgulho grego me parecia maior que o brasileiro da semana da Independência.
Pude ver de perto a Semana da Pátria grega, quando vivi em Salônica (norte da Grécia), entre 1988/1991. A indefectível parada militar também se fazia presente, mas era coisa só de militares e não de estudantes. O sentimento patriótico era mais visível, o ano inteiro, afinal a independência do país foi conquistada com sangue numa guerra trissecular onde muitos morreram. Talvez aí resida a grande diferença da nossa “independência”, que foi apenas declarada por D. Pedro I (“antes que um aventureiro lhe lançasse as mãos”, como aconselhara seu pai, D. João VI) e não conquistada nas ruas pelo povo.
Mas voltando à parada marcial, pergunte se algum dos estudantes obrigados a marchar, se sente mais patriota? E nossos ouvidos, nas semanas que antecedem os desfiles? O grande “barato” nas escolas é participar da banda marcial. Quem consegue ser selecionado, ganha status de herói. Se não for na banda, pelo menos como destaque de pelotão, porta-bandeira ou quem sabe uma aluna fazendo balizas em plena avenida. Esse quadro não lembra um pouco o desfile de uma escola de samba? Ou seja, os jovens acabam desfilando mais pela vaidade ou pela vontade de dar espetáculo, ou no mínimo de fazer bonito em nome da escola. Sentimento patriótico? PN.
Para completar o show, tem ainda as grandes disputas de bandas marciais, com suas evoluções e uniformes de gala. Prêmios e garbo juvenil. Tudo no melhor estilo “competição esportiva”. Com direito até de representar a cidade em algum evento interestadual ou nacional (a mídia do Governo do Estado chega a exaltar uma escola de Belém que ganhou um concurso nacional). Sentimento patriótico? PN.
Que não me entendam os patrulhadores de plantão, como um exacerbado defensor de um furor patriótico. Para mim, sentimento patriótico rima com cidadania. E cidadania se conquista com atitudes, a partir de parâmetros educacionais que nosso país infelizmente exila de nosso cotidiano. E é exatamente como exilado, que podemos sentir um patriotismo que aflora de nossas mentes. Quando estamos longe, bate aquela saudade de um país divinamente lindo, pacífico e ao mesmo tempo cruel, com as atrocidades que emergem da desorganização urbana e das injustiça sociais. Como ser patriota num país em que a corrupção se entranha da mais recôndita prefeitura do interior às esferas de poder do Planalto Central?
Sim. É possível ser patriota, acreditar que ainda existe um país a construir, apesar da lama. A pátria que queremos não está nos desfiles do sete de setembro e nem na alegria desvairada do período da Copa do Mundo.
Cabe ao poeta, em seu exílio de embaixador, cantar a Pátria que ninamos em nossos sonhos:
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Pátria Minha
.
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
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Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
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Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!
.
Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
.
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.
.
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...
.
Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!
.
Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.
.
Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
”Liberta que serás também”
E repito!
.
Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.
.
Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.
.
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
”Pátria minha, saudades de quem te ama...
.
(Vinicius de Moraes)
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(*) Artigo inserido em minha coluna semanal Perípatos, publicada nesta terça-feira, 08.08.2006, no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará.

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