sábado, 13 de julho de 2013

Com os grãos de areia em nossas mãos, para dizermos o que pensamos

10 de julho de 2013. Dez horas da manhã.

Dirijo meu golzinho preto 2004 (com corpinho de 2003) pela BR-163 em direção à chácara Pouso Alto, na localidade de Cipoal. Já passamos do posto da PRF (Polícia Rodoviária Federal) e relaxo ao volante sem precisar segurar os 40 quilômetros por hora.

Ao meu lado, o velho grego Georgios Ninos, do alto de seus 92 anos, tenta me dar um pouco mais de suas lições. Com a mente já um pouco fraca – pelo tempo – apesar de manter o vigor da juventude em seu corpo cuidado à base de rígida dieta vegetariana e exercícios físicos, o velho grego tenta se comunicar comigo em mais um dia que passamos juntos no meu período de férias/licença do Judiciário, mas as palavras lhe faltam. Suas ideias já não conseguem se traduzir com a mesma maestria de alguns anos. O peso da idade.

O velho Ninos e sua "gororoba vegetal"

Tentando balbuciar algumas lições ao filho desleixado que continua não cuidar da saúde, na semana em que este está prestes a completar meio século de vida, o velho grego acaba me transportando para um mundo inaudito, fazendo-me lembrar de velhas lendas da mitologia helênica que estudei na adolescência, nos livros que ele me comprou. O carro parece flutuar, enquanto meu pai continua balbuciando suas mesmas lições e a mitologia atravessa à minha frente. O cavalo à beira da estrada vira um Pégaso (o cavalo alado dominado pelo herói Belerofonte) e me transporta além das nuvens negras de mais um dia nublado no oeste do Pará.

Me veem à mente duas dessas lendas, das mais tristes tragédias contadas por Homero e outros escritores da antiguidade helênica. São lendas sobre o amor e a velhice, numa Santarém de 352 anos dos quais 35 vi de perto quando aqui cheguei, aos 15 anos adolescentes.

Sibila de Cumas e Apollo, de Giovanni Domenico Cerrini

Uma das lendas fala da Sibila de Cumas, uma das 10 sibilas (profetisas) do deus Apolo, que para se tornar sua esposa resolveu pedir a vida eterna, mas de uma forma inusitada: colocou um punhado de areia em sua mão e pediu-lhe para viver tantos anos quantos fossem as partículas de terra que tinha ali. Entretanto, esqueceu-se de pedir, também, a eterna juventude. Com o passar dos anos tornou-se tão consumida pela idade que teve de ser guardada no templo de Apolo, na cidade de Cumas. A lenda diz que a Sibila de Cumas viveu nove vidas humanas de 110 anos cada! 

Aurora abandona Titono, de Louis Jean François Lagrenée
A outra lenda grega é sobre o amor da deusa Eos (Aurora, irmã do Sol e da Lua) por um príncipe mortal, Títono, irmão do rei Príamo, de Tróia. Ela, um dia o raptou, casaram e tiveram dois filhos, mas enquanto Eos conservava uma juventude eterna, Títono, por ser mortal, começou a envelhecer. Eos conseguiu então que Zeus, o deus dos deuses, concedesse a imortalidade ao seu amado, mas por falta de reflexão não pediu também a juventude eterna para o amado e este envelheceu continuamente, enfraquecendo. Chegou ao ponto de ficar pequeno como inseto encarquilhado, até que ela, penalizada, pediu a Zeus que o transformasse em uma cigarra.

10 de julho de 2013. Dez e cinco da manhã.

Grandes caminhões graneleiros ocupam as duas laterais da estrada entre Santarém (PA) e Cuiabá (MT) e eu preciso desanuviar meus devaneios mitológicos para não dar de cara com aqueles monstros de nossa mitologia moderna, do famoso deus Mercado. Meu pai continua balbuciando suas lições. Entre gergelins e linhaças, iogurtes e beterrabas, o velho grego para de falar sobre as receitas de suas famosas gororobas e me emociona dizendo “queria ter tua idade, para poder dizer o que penso”.

Entre o medo de chegar à idade dele e não poder “dizer o que penso” e o medo de morrer antes dele pelo descuido à ditadura do regime alimentar, escolho a vontade de viver com experiência. E quem sabe, diminuir uns quilinhos...

Por isso, o ato de refletir sobre o meio século que completo neste sábado, 13/07/2013, passa pela estrada trilhada pelo velho Ninos, mesmo que eu tenha buscado atalhos diversos do dele, e que juntos possamos dizer que cada um, ao seu modo, viveu a vida.

10 de julho de 2013. Dez e quinze da manhã.

Entro na chácara e vejo meu pai sair do carro com uma pequena lágrima retida no canto do olho. Os Ninos são feitos de manteiga derretida. Choramos por qualquer coisa. E a velha desculpa de sempre: “tem poeira aqui”. Os Ninos são orgulhosos. Não gostam de se mostrarem frágeis, mas às vezes, se debulham em lágrimas, seja cantando uma canção ou assistindo a uma novela na TV.

Fico parado dentro do carro por alguns instantes. Naquele momento, as ideias para esse artigo começam a brotar. Quase todos os anos, escrevo sobre o dia do meu aniversário como se quisesse deixar um testemunho de mim a cada ano. Um diário de bordo de uma nau enlouquecida. Pitadas literárias de um filho que tentou ser mais que o pai. Agora, nesse meio século, essa relação parece ficar mais próxima, tanto quanto mais distante.

Olho pra trás e vejo toda minha existência tentando me firmar como um cidadão de bem. Como meu pai ensinou. Como sempre me cobrou, com puxões de orelha. Com berros. Até eu sair de casa aos 16 anos e achar que tinha um mundo a conquistar. Foram idas e vindas de um filho pródigo, que um dia conseguiu provar ao pai que tinha algum valor. Não porque se tornou um jornalista, com certo prestígio, numa cidade perdida no meio do nada amazônico, como são todas as cidades do Verde Vagomundo, do ximango Bené Monteiro. Nem tampouco por que fez filhos e filhos perpetuando o nome, um dos orgulhos helênicos. Mas porque, apesar de tudo, manteve a essência dos ensinamentos do velho grego turrão, que ainda hoje quer puxar (literalmente) nossas orelhas...

10 de julho de 2013. Dez e vinte da manhã.

Saio da Chácara de minha irmã e sigo pela estrada. Ainda tenho um TCC de pós-graduação pra terminar. Preciso revisar o livro de poesias que agora vou lançar (acertei tudo com o Cristóvam Sena, do ICBS). Mais um loucura minha. [No final, por problemas de última hora, o livro foi adiado mais uma vez]

“Queria ter tua idade, para poder dizer o que penso”. A frase do velho grego ecoa em minha mente. Ele disse muita coisa pelas mãos. Com seu faro de pequeno comerciante, deixou sua marca na cidade que adotou como sua.  E do alto de seus rompantes de arrogância, misturados ao velho sorriso cativante, um dia me disse: “Houve um tempo em que tu eras o filho do seu Ninos, o homem do lanche mais gostoso da cidade. Hoje me orgulho quando alguém me pergunta se sou o pai do Jota Ninos”. Os Ninos são metidos a bestas.

Mesmo depois de me dizer essa frase de me deixar todo gabola, não duvidou em me ordenar que partisse para a Grécia, antes que eu “amanhecesse com a boca cheia de formiga”, como lhe diziam os telefonemas ameaçadores da época em que adorava polemizar com poderosos locais, pela Rádio Rural. “Prefiro um filho vivo sem fama, do que um filho morto famoso”, decretou. E mais uma vez definiu meus rumos, já nos altos de meus 25 anos!

Três anos de autoexílio (1988/1991), em sua terra natal, para evitar que minha boca expressasse o que eu pensava. Três anos de amadurecimento, numa Grécia de encantos, onde pude respirar das lendas de outrora e até tentar por juízo na cabeça socialista de sempre. [A Grécia de hoje, nem de perto lembra ao menos a Grécia que eu conheci. Muito menos a Grécia de meu pai ou a das lendas mitológicas]

Eu, na Grécia de meu pai, aos 25 anos.

Amadureci tanto que, após ter retornado ao meu “Santo Harém” (como chamava ironicamente a cidade, em alguns artigos de jornal, à época), um colega jornalista disse que eu havia me “despolemizado” (rs)! Afinal, um ex-militante petista fazer assessoria de marketing para um prefeito do antigo PFL (hoje, DEM) era o fim da picada!

10 de julho de 2013. Dez e vinte e cinco da manhã.

O carro vai mais lento, pois a PRF é logo ali. Nada de pensar em lendas gregas agora. Passada a barreira, começo a fazer um retrospecto do que vivi depois de retornar da Grécia.

A carreira jornalística chegava ao limite do tolerável no inicio do século XXI, mas o acúmulo de conhecimentos foi suficiente para entrar, através de concurso público no Poder Judiciário, onde já atuo por dez anos como analista judiciário (“babá” de processos carcomidos pelo tempo), sem deixar de lado a carreira de jornalismo e atuando num setor onde a comunicação se faz presente: o Tribunal do Júri.

No final de 2009, vivi a experiência de voltar a ser solteiro depois de 17 anos com uma família, quatro filhos, duas netas, cinco cachorros... E aos poucos, voltei a reescrever poesias guardadas em velhos sacos de papel. Voltei a comprar algumas brigas pelos blogs da vida. Voltei a polemizar, até me filiando ao PCdoB, pelo qual sonhei em organizar um grupo para mudar o status quo local, mas fracassei. Até um plebiscito pela criação de um novo estado, enfrentei. E fracassei. E me envolvi num sem-número de atividades como ativista cultural, ambientalista, pesquisador de história e voltei até a ser sindicalista! E em muitas coisas fracassei. Enquanto isso o açúcar se acumulava no sangue, até eu ser agarrado pelo mal do século: o diabetes. E tenho tentado me curar, mas tenho fracassado. Puxão de orelha do velho Ninos.

Aos 50 anos, chego ao terrível dilema de continuar querendo “dizer o que penso”. Seja em um programa de rádio, seja nas redes sociais, seja neste pobre blog, que de vez em quando abandono. Não existe fracasso quando se quer dizer liberdade. Talvez seja uma questão de ponderar que já não tenho o vigor da juventude para abraçar tantas causas. Então o primeiro passo talvez seja me desvencilhar da maioria das atividades e tentar a tal “vida saudável”. Depois do TCC de Especialização, quem sabe um mestrado e/ou doutorado? Quem sabe um livro dois, livros? Quem sabe um filho, uma árvore?..

10 de julho de 2013. Meio dia. De volta a Santarém. Tempo de lembrar o que tenho feito recentemente, para chegar aos 50 anos.

De um ano pra cá encontrei uma nova razão para continuar “dizendo o que penso”. Um novo amor, que não me cobra a juventude (plena, que já não tenho), e sim a experiência de que precisamos para os novos tempos em que muita gente vai às ruas “dizer o que pensa”.

Eu (com cara de babaca) com minha nova razão de viver, Ana Charlene.

O que importa, nestas primeiras horas do meu meio século, é que eu não queira a eternidade por um punhado de areia nas mãos, nem tampouco sonhar em virar uma cigarra...

13 de julho de 2013. Um pouco mais da meia-noite. Termino o texto e revigoro o blog. O recado do seu Ninos está aí.

EU DIGO O QUE PENSO: FELIZ ANIVERSÁRIO, SEU BABACA!




5 comentários:

Anônimo disse...

Jota, chegar a meio século não é para qualquer um não!! Já passei por isso, e quando se pula esses 50, tudo fica mais novo, mais esperto, mais lúdico, mais amadurecido. As lembranças são muitas, muitas boas, ruins, engraçadas, amorosas, tristes, alegres... são histórias que ficam na mente a nos empurrar aos 100!! Jota, que novos 50 venham, não tenha medo!! Hoje, podemos ser o quer queremos, podemos dizer e falar o que pensamos sem traumas, sem mágoas, afinal já passamos dos 50.

Dornélio

Georgios Ninos disse...

Me emocionei lendo esse post pai. Te amo.

Georgios Ninos disse...

Me emocionei lendo esse post, pai. Te amo.

Anônimo disse...

Parabéns Ninos. A caminhada continua. Siga em frente. Que venham outros cinquentas. Rs.
Neucivaldo Moreira

Ismael Moraes disse...

Que bela crônica que encontro nesta madrugada. Parabéns pela pena de escrever e pela pena de viver.