terça-feira, 28 de agosto de 2007

Uma estréia digna de um repórter atrapalhado (*)

Recebi a provocação de um leitor anônimo, através de carinhoso e-mail, pedindo que eu conte como foi minha estréia na Rádio Rural de Santarém, há 23 anos. Acho que esse anônimo sabe das coisas... E porque esconder?

Maio de 1984. O departamento de jornalismo da poderosa Rádio Rural precisava contratar um novo repórter. Um ex-seminarista nascido na vila de Cucurunã, o hoje bem sucedido publicitário Dornélio Silva, havia retornado há pouco tempo para sua cidade natal com um projeto de criar pintos, mas não deu certo: os pintos de Dornélio morreram (ele vai odiar isso...) e acabou indo trabalhar na Catequese Rural onde mantinha vínculos com os movimentos sociais. Dornélio teve a idéia de tentar indicar alguém que estivesse atuando nesse movimento, mas não conhecia ninguém pessoalmente.

Ele foi à uma das infindáveis reuniões de um desses grupos e perguntou: “Vocês não têm alguém que atue no movimento, que seja meio doido e saiba escrever alguma coisa para ser indicado e disputar uma vaga de repórter na Rural?”. Os líderes sindicais, em uníssono (num êxtase coletivo), gritaram: “Jota Ninos!” Não sei se era amor por minha performance como militante, pelo meu estilo aguerrido ou simplesmente para me ver pelas costas. Mal eles sabiam que ali nascia um repórter!

Eu era o cara que andava sempre de gravador, caneta e papel na mão, ou escrevendo atas ou gravando conversas. Uma memória ambulante que tinha sua utilidade no registro do movimento popular em panfletos, boletins e outros materiais impressos. Além disso, já vinha gravando semanalmente o programa de rádio Momento Sindical, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, na Rádio Rural. Ao meu lado a também futura jornalista (e hoje diretora do Ideflor) Raimunda Monteiro, a eterna Raimundinha.


Naquele tempo eu tinha também uma barulhenta Mobylette Caloi prateada, motoneta precursora das scooters de hoje e que eu vivia empurrando nos areiões da periferia. Corpo esquálido (com uma protuberante barriguinha), óculos de John Lennon e cabelo idem, sandálias de dedo, calça jeans surrada e uma velha mochila fedorenta cheia de papel velho. Em suma, era um lixo ambulante se achando revolucionário!

Recebi a notícia com entusiasmo. Três dias depois lá estava eu me apresentando ao futuro chefe, Eriberto Santos. Ao chegar na rádio passei pelos estúdios onde tocava uma música que fazia sucesso naquela época, do Genival Lacerda: “mata o véio, mata o véio...” Torci o nariz. Soube então, que disputaria a vaga com outro candidato que apareceu por lá. Eriberto, solenemente, mas com aquele eterno sorriso de seresteiro, nos deu duas pautas diferentes.


Eu deveria entrevistar o novo coordenador da regional da Sespa que funcionava àquela época na avenida Barão do Rio Branco, onde hoje se compra vale-transporte. Em seguida, uma esticada ao Mercado Modelo (o Mercadão, naquela época, não existia) para saber como estava o preço do peixe, e por último, uma passagem na emergência do Sesp e na Delegacia de Polícia. Pautas corriqueiras de qualquer “foca”...
“Quem chegar primeiro, ganha a vaga”, disse meu editor. Saímos os dois candidatos chispando e ouvimos atrás de nós gargalhadas abafadas de radialistas que faziam apostas de quem desistiria primeiro...


Logo na primeira parada o primeiro chá de cadeira. A ilustre autoridade (nem me recordo quem era) me deixou plantado um bom tempo, esperando. Desesperado, olhava os minutos passarem e achei que se continuasse ali meu adversário acabaria chegando primeiro nas fontes de notícia e tchau emprego! Comecei a pensar com meus botões: será que foi uma cilada daquele editor para favorecer o outro? Era uma época em que todo revolucionário petista era paranóico e vivia pensando que o mundo estava contra si (cá pra nós, isso não mudou muito nos dias de hoje entre psois e pstus...).

Decidi me rebelar contra a pauta. “Vou ali e volto”, disse à solícita secretária. Olhei o relógio e vi que tinha pouco tempo para voltar à redação. As palavras de Eriberto ecoavam em minha cabeça: “Quem chegar primeiro, ganha a vaga.” Eu não podia perder a chance.


Em desembalada carreira montei minha possante Monareta e desci a Barão em direção à praça da Matriz, com intenção de dobrar no Cine Olympia e chegar ao Mercado Modelo (esse era o trajeto na época). Ia pensando: “como vou perguntar sobre peixes, se mal os conheço?”. Se Eriberto tivesse me pedido uma pauta sobre reuniões de sindicatos, eu daria um show. E continuei pensando, monareta na banguela, “como é mesmo o nome daquele peixe que o Eriberto disse, Jara...”

- Quiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... A freada não conseguiu parar a motoneta. Por trás da matriz, dei de cara com um velhinho atravessando a rua. Ele caiu prum lado eu pro outro e a monareta na parede da igreja!

O choque no meio da rua. Carros páram, mulheres gritam. “Socorre o velhinho!”, disse uma beata. “Motoqueiro assassino!”, condenou a outra. Joelho ralado, calça rasgada, motoneta avariada e o velhinho caído no asfalto de cara no chão. A turba já pensa em me agredir. Vejo dois radialistas chegando ao local para dar o “furo”. Gérson Gregório e Bena Santana, que mal sabiam que estavam frente a um futuro colega, registravam a cena. Escutei a narrativa para o programa do Edinaldo Mota: “Motoqueiro irresponsável pode ter matado um velhinho aqui próximo à Matriz!”. Minha primeira notícia na rádio era eu mesmo!!!

Meio choroso olhava atônito a cena sem saber o que fazer, até levar um safanão de um homem-armário. “Levanta, guri. Socorre o velho, tchê!” O gaúcho me puxou o braço e quase ficou com ele nas mãos... Cheguei próximo do velhinho e ele respirava. Com a ajuda do gaúcho coloquei o velhinho na carroceria de sua picape e só tive tempo de dizer a uma funcionária da Matriz: “Cuide da minha moto!”. Ela balançou a cabeça positivamente, enquanto Bena Santana entrevistava os transeuntes.


Chego à emergência do Sesp. O velhinho é socorrido e passa bem. Continuo choroso. O gaúcho foi embora. O médico me consola, mas ao mesmo tempo me assusta. “É bom você ir registrar o caso na delegacia, vai que o velho morre...” Desabo em prantos, mas logo me refaço. Aproveito e pergunto como está o plantão. “Tirando esse acidente, tudo normal”, diz o plantonista. Na delegacia prefiro não registrar minha ocorrência e perder um tempo precioso. “Depois eu faço”, pensei. Precisava acreditar que tudo acabaria bem. Anoto alguns roubos de galinha e sigo em frente. Ouço quando um policial chega e diz: “Parece que um motoqueiro matou um velhinho lá na matriz!”. O delegado me olha e diz: “Jornalista, mete pau nesses malucos!”. “Xa’comigo, delega!”, digo eu todo íntimo, quase me borrando nas calças.

Pego um ônibus e desço até a regional da Sespa. Sou recebido pelo diretor. O joelho dói, o coração apertado, mas não posso perder o emprego. “Cuidado ao sair amigo, tem um motoqueiro maluco matando gente aí na Barão”!, me informa o médico. Quase mostro-lhe um cotoco, mas dou um sorriso amarelo e saio.

Volto à Matriz, agradeço a gentil senhora e pego o que sobrou da Monareta e sigo ao Mercado Modelo, aos trancos e barrancos. O Pirarucu continua caro. Melhor preço é o Acari. O joelho continua doendo. Sinto que vou desmaiar. A motoneta, já fumegando, me leva até à Rural que funcionava onde hoje é a entrada da TV Vida, na travessa dos Mártires. Entrego as reportagens ao Eriberto. Minhas pernas tremem. Vejo que o tempo marcado já extrapolou e tento explicar.

“Mas fostes tu a notícia do dia?”, diz Eriberto em gargalhada. “E o emprego?”, pergunto, já variando. “Perdi a vaga pro meu concorrente?”. Eriberto, com o olhar terno, arremata: “a vaga é tua cara, o outro desistiu e você apesar de passar por um acidente ainda trouxe todas as pautas. Parabéns, colega!”.


Meu batismo no jornalismo foi assim: com sangue, suor e lágrimas. O velhinho ficou bem e até ficamos amigos. Mas tive que suportar meus colegas de rádio me torturarem por vários meses com uma musiquinha que passou a ser meu prefixo, no início de carreira, por obra e graça de Edinaldo Mota que me apelidou de “repórter mata o véio”!


E haja Genival Lacerda, antes das notícias policiais...

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(*) Artigo inserido hoje em minha coluna semanal Perípatos, publicada no Diário do Tapajós, encarte regional do jornal Diário do Pará. A charge (mal feita) é uma montagem grosseira feita por mim sobre desenho anônimo obtido na internet.

8 comentários:

Jeso Carneiro disse...

Crônica do tipo "duca", El Grego! Rivaliza com aquela do assalto. Parabéns!

Anônimo disse...

Nunca vi ninguém contar e compartilhar suas desgraças pessoais de modo tão interessante como tu.
Parabéns J pelo fragmento da tua futura auto-biografia que vamos tendo a oportunidade de conhecer aos poucos. Imagino que muita coisa interessante ainda deve vir por aí, sem tantos acidentes, espero. Agora sabemos em quem foi a inspiração dos mototaxistas de Santarém.
abraço

Anônimo disse...

Ninos, não sabia que tinha sido tão hilária (para nós, claro) sua entrada no ramo da comunicação. Essa deveria ser contada numa grande rodada.

Que bom que depois de tudo o "véio" não morreu e o Eriberto reconheceu seu talento atrapalhado. hehe

bjs.

Rosa

Anônimo disse...

rsrsrsrs. que história mais bem contada!!! Quando não é trágico é cômico ne? Eu tava curiosa pra saber o final, se o velho tinha morrido... já pensou eu ia ter um ex-chefe assassino... affff
Adorei. Aliás parabéns vc é um ótimo escritor, eu adoraria, um dia, vê um livro com essas suas histórias e muitas outras. bj grande.

Anônimo disse...

As figuras do rádio em Santarém, tem hitórias fantásticas. Eu não conhecia essa tua. Tão hilária, que lagrimei.
Um abraço.

Adilson Araújo (Magro)

Anônimo disse...

Oi Ninos...muitas saudades
Fico rindo muito, muito mesmo de suas cronicas, e dos seus micos do passado, me divirto bastante e ainda fica de contra peso uma grande e saudosa lembrança da nosssas lutas por uma ideologia que.......deixa pra lá.
Bom o que quero mesmo hoje, é o e-mail da Raimundinha lá de Belém, já tentei falar com ela por telefone mas não consegui na unidade do IDEFLOR, talvez ela nem lembre mais de mim, mas quero tentar um contato para matar a grande saudade. E dar parabéns pela grande conquista. Sei que ela é muito ocupada...Doutora que manda rs, mas não vou desistir
Aguardo ansiosa
Um grande abraço de sua amiga

Isabel Lisboa
Manaus/Amazonas

Anônimo disse...

Fala, J. Muito boa sua crônica, me fez rir bastante tbm. Vc realmente tem o dom da palavra, sem falar na verve hilária.
Não sou muito de escrever prosa (umas duas vezes enveredei pelo caminho dos contos), mas a poesia é a minha praia. Então mando o que tenho:

"Velho cais

O vento nas vagas
Vaga
Sem rumo
Seu retorno é anunciado
Pelo cheiro de maresia
Que exala nos cascos das
Embarcações
Aportadas no velho cais
Onde as ilusões embarcam
Para a viagem sem retorno
Velho cais
Quantas recordações
Trazes a este marinheiro
De viagem sem fim
Que sequer marinheiro é
Apenas sonhador
E por isso mesmo
Marinheiro-mor
Capitão de longo-curso,
Eterno curso, diria eu,
No eterno sonho
Eterna poesia
Sonhar de viagem sem fim
Onde o retorno do vento
É anunciado
Pelo cheiro de maresia
No velho cais
das embarcações...


Stm, 05/01/2000"

P.S.: Não faz lembrar o cais do nosso Tapajós?
P.S.2: Vou procurar em meus arquivos os contos de que falei. Mando pra saber sua opinião.

Hamilton Fernandes, de Macapá, recado no Orkut.

Anônimo disse...

Deve ser por isso que dizem que a vida de reporter é ralada. Você levou ao pé da letra e ficou to ralado batendo o "véio", mas ainda bem que le sobreviveu.

Eae quanto tah o preço do peixe? Mas cuidado com o "véio".

Júnior Tapajós
www.w3mais.com.br