sexta-feira, 9 de maio de 2008

Que culpa têm meus tímpanos do “pinto pequeno” dos outros? (*)

Não sei se estou ficando um velho ranzinza (nem cheguei aos 45) ou se estou vivendo o apocalipse. O fato é que muitas coisas do nosso cotidiano me incomodam, principalmente quando meu direito é desrespeitado. Há tempos venho querendo escrever sobre o assunto, mas tinha prometido a mim mesmo evitar esse tipo de comentário pelo fato de atuar como serventuário da Justiça. De repente, percebi que isso é tolice: antes de ser funcionário da Justiça, sou um cidadão!
O título acima expressa exatamente isso: porque tenho que sofrer com o ruído infernal de aparelhagens de som possantes - que tantos filhinhos-de-papai insistem em nos impingir no dia-a-dia - só por causa de seus complexos de inferioridade? Que me desculpe a colega do andar de cima, mas existe uma galera de garotões acostumados a aparecer nas colunas sociais que deve sofrer com a crise freudiana do “pinto pequeno”. É a lei da compensação: o "cara" olha pra baixo e percebe que não é tão “turbinado” o quanto gostaria. Aí, papai lhe arranja a mesadinha do mês e o moleque compra um som “arretado” para se vangloriar diante dos outros. É o mínimo que se pode pensar de quem precisa exibir carrões com sons potentes, para impressionar as meninas. Talvez fosse mais interessante que os papais investissem o dinheiro com terapia ocupacional pros seus meninos... o dinheiro teria retorno e a sociedade agradeceria!
O pior de tudo é que ao se acharem no direito de promover a fuzarca, eles tripudiam o meu direito de me abster da barulheira. E haja barulheira! O agravante é que o gosto musical dessas tribos é duvidoso: de breganejo a axélypso...
Há aqueles que levam seu som para a orla, juntam alguns amigos e até se divertem numa boa. Sem incomodar os outros. Mas há alguns que exacerbam e fazem do seu som um trio elétrico de milhares de megatons, não se importando com os tímpanos dos pobres transeuntes...
E pra não dizer que não falei de flores, até em minha família tenho esse tipo de problema. Mas longe de mim incentivar, pelo contrário, pego no pé, me torno um chato, antiquado, dinossauro...
Ora, venhamos e convenhamos! A questão não é o barulho em si, mas quando e onde ele é produzido. Sou da geração 80 e quando era solteiro adorava som alto em meu apê para tocar meus vinis dos Titãs, Paralamas e até do RPM. É possível que já tenha até incomodado algum vizinho, mas era uma época em que um olhar bastava para que a gente se envergonhasse e mudasse de postura. Hoje, se eu resolver encarar um desses brega-boys, tô arriscado a parar num traumatologista (e se eles souberem ler, é possível que esse seja meu destino a partir de amanhã...)!
Em Alter do Chão tem uma placa (foto) que toda vez que vejo, morro de rir! Ela diz em letras garrafais: “PROIBIDO SOM ALTO. Lei 7347/1985. Art. 225 da Constituição Federal. Som permitido em decibéis: 65 diurno e 55 noturno”. E sempre ao lado da placa, dezenas de carrões enfileirados, rugem a trocentos decibéis. Ignóbeis! E onde estará o ISAM – Instituto Socioambiental de Santarém – para coibir os abusos? Será que ao menos eles têm um decibilímetro para auferir a potência dos sons? O ISAM faz algumas blitze, talvez aplique uma multa aqui e acolá, para algum carro de propaganda que se exceda. E só!
Mas falando em leis, convivo diariamente com elas e todas são bonitas. Não quero falar como um funcionário da Justiça, mas como um cidadão: acho que não precisamos de mais leis, precisamos de quem as faça cumprir. No caso, o Estado, através de seus fiscais: as polícias, o Ministério Público e órgãos de apoio. A Justiça entra quando a contenda precisa de quem modere uma solução, ou precise de punição.
A lei citada na placa de Alter (7.347) é a que “disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente” e outros direitos civis. Ou seja, é através do que diz essa lei que podemos processar alguém que fere os nossos direitos. Mas, talvez, a maioria de nós ache que não adianta acionar a Justiça, abarrotada de tantos processos. E a impunidade continua.
Já o art. 225 da CF, também citado na placa de Alter, diz que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Bonito, não? Poluição sonora é uma das piores poluições e que nos afeta diariamente, quase de forma imperceptível (não é o caso das parafernálias sonoras). O que falta para que as autoridades façam valer esse direito de todos?
Fico feliz de ter ouvido recentemente um novo delegado de polícia assumir o comando de suas equipes vociferando: “vamos combater principalmente a proliferação de aparelhagens!” Se não for rompante de quem quer visibilidade eleitoral, com certeza pode fazer história. Um juiz que passou por Santarém recentemente, tornou-se o terror dos brega-boys: trancafiou um deles na penitenciária por alguns dias e mandou outros tantos para a delegacia de polícia, pelo menos para se explicarem ao delegado de plantão. Seu exemplo, destacado em jornais do sul, levou a uma ação da polícia e do Ministério Público em aplicar não a lei das contravenções penais cujas penas são brandas, e sim a Lei ambiental (9605/98), em seu poderoso art. 54 que pode dar cadeia de até 10 anos!
Ao invés disso o que vemos é que a orla fluvial de Santarém virou o centro do pandemônio diário. Pregadores ensandecidos prometem o reino dos céus EM ALTO E BOM SOM. (como diz um publicitário amigo meu: será que Deus é surdo?); empresas promovem produtos em blitzes barulhentas, no alto de trios elétricos abarrotados de louras siliconadas; até uma ONG ambiental (!) promove a “luta pelo desenvolvimento sustentável do meio ambiente, sem poluição” usando potentes caixas de som que, pasmem, poluem o meu ambiente! E no meio de tudo, não podiam faltar os brega-boy e suas máquinas possantes. Tudo aos olhos das autoridades (que também participam da festa!).
Voltando a Alter do Chão, nos último carnaval a brincadeira do trigo (que divide opiniões), teve um quesito a mais para bagunçar o coreto de vez: os brega-boys e seus pintos pequenos estavam lá, no meio da multidão, atrapalhando a bagunça esbranquiçada! Precisavam mostrar suas geringonças para as moçoilas e provar que algo neles é maior do que se pensa...
Ou seja, a sociedade toda parece ter o “pinto pequeno”. Ou será que eu morri e esqueci de deitar?
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(*) Artigo inserido em minha coluna semanal Perípatos, publicada no dia 06.05.2008, no Diário do Tapajós, encarte regional do jornal Diário do Pará.

sábado, 3 de maio de 2008

A lágrima que veio do outro lado do oceano

1º de maio, feriado, dia de botar em dia coisas pendentes. Como estava sem postar os últimos artigos que escrevi nas duas semanas passadas, pretendia fazê-lo naquele dia. Mas um telefone, de longe, interrompeu meus planos.
A notícia já era de certa forma esperada: minha tia Maria (na foto abaixo, eu e ela em sua casa, na Grécia) acabara de falecer em Salônica (GR). Em respeito à memória dela, preferi não postar nada naquele dia que levasse ao riso. Só hoje, resolvi escrever sobre sua morte e postar as duas crônicas abaixo.
Aos 89 anos ainda incompletos, tia Maria encontrava-se em coma há algumas semanas e já havia sido desenganada pelos médicos. Meu pai, que foi pra lá há um ano para ficar perto dela por causa da doença que a impossibilitava de se locomover sofria a perda da irmã mais velha, a única que ele não conseguiu trazer para morar no Brasil na década de 1950, quando os Ninos escolheram este país para recomeçar a vida após o fim da traumática 2ª guerra mundial.
Convivi com tia Maria durante os três anos que estive na Grécia (1988/1991). Não foi fácil. Tinha um gênio difícil e não conseguia se adaptar ao nosso estilo brasileiro de viver. Além do mais, nunca teve filhos e não sabia lidar com um jovem rebelde como eu era. Por conta disso acabamos nos desentendendo e, como é praxe na família Ninos (geniosa...) ficamos “de mal” estes anos todos, sem poder aparar as arestas antes de sua morte.
Eu já havia tentado conversar com ela em outras ocasiões, mas esta mantinha-se distante. Quando esteve aqui, há sete anos, mal me cumprimentou no dia do meu aniversário! Confesso que por conta do precipício que se criou entre nós, a lágrima pela morte dela não rolou imediatamente na quinta-feira, após eu receber a notícia de sua morte. Depois de algum tempo entalada no canto do olho, a lágrima surgiu aos poucos, contida é verdade, num misto de dor e alívio. É que pelos relatos de meu pai, a tia estava sofrendo muito na cama com dores lancinantes, apesar de tentar manter a velha fleuma aristocrática e o orgulho helênico (beirando a arrogância) que sempre lhe foram marcantes. Em resumo, mantinha de forma admirável seus princípios morais até os últimos instantes de sua vida.
Posso dizer que apesar dos problemas entre nós, tia Maria teve um grande significado em minha vida, pelo menos por ter me acolhido em sua casa por aqueles três anos de um auto-exílio forçado por minhas posturas de repórter polêmico que incomodaram alguns poderosos da região.
Muita coisa mudou em mim depois do retorno do outro lado do oceano. Outro dia talvez eu conte algumas histórias hilariantes que vivemos, e que fizeram o contraponto aos momentos de tensão entre a representante da velha Europa e o menino sonhador da América do Sul.
Que tia Maria descanse em paz!

Eu, Tiradentes e uma música presa na garganta (*)

Muita gente não sabe, mas escrevo poesias desde a adolescência. E muitas das poesias surgiam cantaroladas, mas a música acabava perdida no esquecimento ficando o rascunho no papel. Foi assim que fiz da palavra meu ofício, passando de um poeta chinfrim a um jornalista médio e chegando a um escrivão judicial razoável. Também criei composições musicais e até tive algum sucesso em festivais de música, mas uma de minhas frustrações até hoje, foi não ter me tornado um intérprete de algumas dessas composições. Talvez, eu tenha evitado que muita gente viesse a sofrer com meus acordes desafinados...
Em pleno feriadão de Tiradentes, lembrei de como ele me foi útil para driblar a censura da Polícia Federal no final da ditadura militar (1984, general Figueiredo) e tentar um vôo mais alto para me firmar como compositor de MPB. O nome da composição era “Desafio” e fazia uma homenagem a um líder sindical rural de Santarém, o Avelino Ribeiro da Silva, morto dois anos antes numa tocaia, por causa de um conflito de terra. Resolvi mudar o título para “Tiradentes” e troquei a frase “bala de fuzil” por “forca que subiu” e, bingo! Consegui levar a música à final do festival de música de Santarém! Eis a letra:
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Tiradentes (Desafio)
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Quando uma luz brilhar
Foi um filho que partiu
E mãe-terra vai chorar
Pois foi ela quem pariu
Mas do solo vai brotar
Outro homem do Brasil!
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(Refrão)
E haja ódio pra parar
Essa força que surgiu
Da boca de quem gritar
Tanta dor que já sentiu
O peito vai se estampar
Cor de sangue infantil
Que jorra um dia sem parar
E transborda feito rio...
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Quando o coração parar
Foi a forca que subiu
(Foi a bala do fuzil)
Que calou esse penar
Por cantar seu desafio
Mas a chama vai queimar
E acender nosso pavio...
(Refrão)

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Mas o mais interessante dessa minha participação não foi driblar a censura da PF e sai do meu parceiro. Eu já trabalhava como repórter na Rádio Rural e conheci um locutor que apresentava o Jornal do Meio Dia, mas que era meio louco e tinha vontade de brilhar numa banda de rock. Tinha até nome artístico: Dioclau Wonder (!), que vinha a ser um anagrama de Cláudio, mais o "Maravilha" em inglês... Mostrei a composição que havia feito e ele aprovou. Após inscrever e classificar para a primeira fase, me empolguei e disse que queria interpretá-la com ele no dia do festival. Ele, meio que concordou...
Tentamos ensaiar com o conjunto oficial do festival, mas o arranjo que o meu parceiro havia feito era muito louco e ninguém conseguia chegar no tom que ele queria. Como cantava em bandas e conhecia a rapaziada que tocava nas noites, me levou embaixo do braço à casa do Paulo Jofre, o popular Paulinho dos Teclados (talvez ele nem se lembre disso) que à época fazia dupla com o Wilsinho Fona à beira da piscina do então Tropical Hotel (hoje Amazon Park). Cláudio, ou melhor, Dioclau, me apresentou como compositor ao Paulinho e pediu para que ele gravasse um play-back do arranjo que fizera. Paulinho conseguiu, depois de muito custo, entender o estranho arranjo do Dioclau. A idéia dele era que nós cantássemos sobre o play-back em pleno festival!
Com a fita em mãos, passamos a nos encontrar na casa dele para ensaiar. Eu entrava com a segunda voz, esganiçada, que perto da voz dele, quase de tenor, sumia. Ele tinha muita paciência e ia me ensinando como fazer. Fui ganhando coragem e aos poucos já me sentia um Chico Buarque chinfrim.
Chegou o dia da apresentação. Fomos os dois na minha motoneta até à praça São Sebastião, onde um grande público aguardava o surgimento de uma nova estrela da MPB! No caminho, Dioclau me surpreendeu: “Jota, tu não vais cantar...” Freei a moto e disse: “O quê?”. Estávamos a uns 200 metros da praça e dava para ouvir os candidatos sendo chamados, enquanto iniciávamos um intenso debate sobre a imposição do meu parceiro. “Se tu cantares, a gente não passa para a outra fase!”, me dizia ele convicto. Revoltado eu me sentia traído e retrucava: “Porque não me dissestes antes?”. Ficamos brigando e resolvi ter um chilique de artista. “Se eu não cantar, tu também não cantas!”. Afinal eu era o dono da letra e da música, ele só tinha feito o arranjo.
Tínhamos ensaiado e eu achava que estava pronto. “Tua voz não dá!”, me dizia o parceiro. Ao fundo ouvíamos o apresentador dizendo: “E agora, a música Tiradentes, de Jota Ninos e Dioclau Wonder, vamos aplaudir!”. Os aplausos ecoaram, mas o palco estava vazio. Continuávamos discutindo. “Chamamos mais uma vez, Jota Ninos e Dioclau Wonder!”, repetia o apresentador. Desci do meu pedestal e me rendi, ao perceber que acabaríamos sendo desclassificados! “Sobe na moto!”, determinei. Chegamos a tempo e Dioclau deu um show. A música foi classificada, mas um jurado que me conhecia, me chamou a atenção. “Tua música passou, porque não encontramos nada no regulamento sobre play-back, mas vê se evita isso na final!”
Fiz as pazes com o parceiro e nos preparamos para a final. Falei pra ele sobre a recomendação do amigo jurado, pois o júri da final seria gente da capital. Dioclau deu com os ombros e disse que não pretendia cantar com o conjunto, pois eles não acertariam seu arranjo. “Xa’comigo, vou com o play-back do Paulinho e ninguém vai perceber”. Resolvi acreditar...
Mas aí tive uma idéia: “que tal fazermos um mis-en-cène com um enforcamento ao vivo, para despistar os jurados?”. A idéia louca caiu nas graças do parceiro. Mandamos fazer uma túnica branca, um capuz preto e uma corda com nó de forca. No dia da final, lá estava o Dioclau cantando e eu nos bastidores. De repente, no final da música, quando o refrão está sendo repetido, Dioclau sai correndo do palco e voltou vestido com a túnica. Na última estrofe do refrão, entro eu de capuz preto e corda na mão. Boto no pescoço do “Tiradentes”, que se pendura até o chão cantando a última frase “E acender nosso pavio...”.
Aplausos do público. Eu estava realizado. Não cantei, mas dei um toque cênico à apresentação, que era minha especialidade. Mas os jurados não engoliram: “o júri informa que a música Tiradentes foi desclassificada, por usar play-back”, sentenciou o apresentador.
Tiradentes foi enforcado, novamente, em plena praça São Sebastião...
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(*) Artigo inserido em minha coluna semanal Perípatos, publicada em 22.04.2008, no Diário do Tapajós, encarte do Diário do Pará (a fotomontagem mal feita, como sempre, é de minha autoria, com imagem roubada da internet).

O ex-burocrata da ONU que “dialoga” com a Matinta Perêra (*)

Hoje, aqui em minha coluna semanal, publico um dos textos (inédito até agora) que produzi ano passado como estudante do curso de Jornalismo do Iespes, durante a disciplina “Reportagem e Entrevista” da jornalista e professora Socorro Veloso, uma paraense que hoje vive em São Paulo e que deu grande contribuição aos futuros colegas do curso. Trata-se de uma reportagem enquadrada no gênero perfil, que escrevi a partir de uma pessoa do nosso cotidiano tapajônico. Escolhi o engenheiro, cronista e poeta Eymar Franco, que me rendeu um personagem inusitado. Acompanhe o texto:

Pouso Alto. A velha placa de madeira à beira do Km 15 da rodovia BR-163, que liga Santarém (PA) à Cuiabá (MT), na localidade rural de Cipoal (um “quase” bairro de Santarém), indica o nome do sítio de 5,5 hectares logo à frente. Remete ao nome de uma cidade mineira carregada de uma simbologia esotérica que só pode ser explicada pela emblemática figura de seu morador, um burocrata paraense que no anos 1980 – no auge de uma promissora carreira no exterior – trocou as salas de conferências da ONU (Organização das Nações Unidas) mundo afora, por um retorno às suas origens no rio Tapajós.
O pomar de frutas cítricas (hoje são mais de 500 pés de laranjeiras, limoeiros e tangerineiras, ¼ do que restou dos áureos tempos quando chegou a produzir e exportar para a região) de Pouso Alto, exala um perfume convidativo a quem, como eu, senta na varanda para ouvir estórias (ou histórias?) de seus “diálogos” com a lendária figura amazônica da Matinta Perêra e de sua experiência com a eubiose, uma ramificação brasileira da teosofia, doutrina esotérica que defende a existência de uma fonte única e eterna para todo conhecimento e demonstra a identidade essencial entre os grandes mitos das culturas mundiais.
Prestes a completar 86 anos, em 17 de setembro, Eymar Cunha Franco (na foto ao lado, nos tempos de burocrata, numa viagem à Grécia) é agrônomo aposentado, escritor e poeta (três livros já publicados). Conversa com certa dificuldade, apoiado sempre por sua segunda esposa, a ex-comerciária e prima em segundo grau Ana Cecília Tavares Franco, 30 anos mais nova. “Ela é, hoje, minha razão de viver”, me diz Eymar com um olhar lânguido e apaixonado ao se referir à Cecília, que convive com ele há oito anos. Recuperando-se de uma queda sofrida há dois meses em sua casa e que afetou sua coluna – mas não seu humor – ele resume o momento que vive:
- Cheguei numa fase da vida em que me sinto plenamente realizado e, como diz um amigo, quero que o resto se f...”, diz às gargalhadas, acompanhadas de uma forte tosse proveniente do vício de fumar pelo menos um maço de cigarros por dia e de um olhar repreensivo, e ao mesmo tempo cúmplice, da esposa, por proferir um palavrão na frente do jornalista.
Pertencente à família Franco, o menino nascido na fazenda Urucurituba, no município de Aveiro, a 12 horas de barco de Santarém, aos nove anos seguiu para estudar na capital do Estado, iniciando seu vôo alto na careira internacional. Hoje, é um velho sábio que faz da crendice popular sua melhor companheira no Pouso Alto.
Códex Alimentarius - Combinando a erudição adquirida nas viagens a diversos países do mundo com a sabedoria do povo amazônida e suas lendas, Eymar relembra o espírito empreendedor de seu bisavô, Alberto José da Silva Franco, comerciante português que chegou ao Pará em 1836, no meio da revolução popular conhecida como Cabanagem (1835/1840) que combatia a elite lusitana no poder. Em seu livro de memórias “O Tapajós que eu vi” (ICBS, 1998), ele conta que o patriarca dos Franco foi um das centenas de portugueses que saíram de Belém naquele período e refugiaram-se na região. Às margens do rio Tapajós, adquiriu uma área de terra onde até hoje existe uma Casa Grande (foto abaixo), símbolo do Brasil Império. Mas foi para lá que ele pediu para voltar, no momento em que representava o Brasil em importantes grupos de estudo mundiais.
Eymar foi funcionário por mais de 40 anos do Ministério da Agricultura, passando por diversas funções até ser indicado para representar o Brasil no Códex Alimentarius, fórum internacional de normalização de alimentos estabelecido pela FAO e OMS, órgãos das Nações Unidas para a agricultura e saúde, respectivamente. Criado em 1963 com a finalidade de proteger a saúde dos consumidores e assegurar práticas eqüitativas no comércio regional e internacional de alimentos, o Códex obrigou Eymar a participar de incansáveis reuniões nos EUA, Suíça e dezenas de outros países, além das viagens por todos os estados brasileiros para disseminação das normas. Isso levou o velho agrônomo, especializado em controle de produtos vegetais e com faro adquirido na vida da fazenda, a preferir o retorno para assumir a Base Física do Ministério da Agricultura em Fordlândia (Aveiro), sob protestos de sua chefia que o considerava louco.
Na área adquirida pelo magnata americano Henry Ford, para a implantação de um mal sucedido empreendimento de produção de látex nas primeiras décadas do século passado e reassumida pelo governo brasileiro já em decadência, Eymar aliou seu conhecimento e responsabilidade para liderar os ociosos trabalhadores que sequer cuidavam da preservação da Vila Americana, um casario de madeira no meio da floresta com arruamento e sistema de água e luz que muitas cidades amazônicas não tinham. Depois de revitalizar a vila, Eymar decidiu se estabelecer em Santarém.
Diálogos com Matinta – “Sou cético em relação à política e à situação que vejo no país e na Amazônia”, declara Eymar ao explicar sua “mania de conversar com a Matinta Perera”. Ele afirma que os “diálogos” são “uma fuga dessa realidade que nos cerca, através da alegoria amazônica”. A lenda da Matinta Perera é uma das histórias que ouvia dos caboclos do Tapajós desde menino. Nos “diálogos”, muitos deles já publicados em jornais locais, Eymar “discute” alguns problemas da atualidade com a Matinta, personagem da mitologia amazônica representada por uma velha vestida de preto, com os cabelos bastante assanhados caídos no rosto, que costuma sair ao escurecer, de preferência nas noites sem luar, em busca de tabaco e assustando as pessoas através de um forte assobio.
“Dia desses”, fala sério Eymar, “a Matinta andou me dizendo que não gosta do George Bush, pois ele é um perigo para a Amazônia”. Quão sábia é a Matinta, penso eu. Outro dos “diálogos”, que estão sendo reunidos para a produção de um livro de crônicas, faz da Matinta (figura abaixo) sua cúmplice no ato de fumar:

(...)

- Tu precisas escrever uma carta! – Resmungou [a Matinta] puxando o esfiapado casaco preto, para agasalhar melhor a sua corcunda.

- Carta? – perguntei - Para quem?

- Ora, pros teus pariceros.

- Está bem. - concordei - E devo dize o que?

- Diz pra eles acabar com essa bobagem de botar anúncio na televisão, dizendo que fumar é prejudiciar à saúde. Quem não sabe disso,hein?

(...)

- E quer saber mais? Eu e o meu compadre Curupira, fumamos há séculos e estamos aqui para provar que fumar não encurta a vida de ninguém.

E continuou:

- Tu sabes o que mata as pessoa de enfarte?

- Não – Respondi-lhe.

- É tensão, ambição, ganância, medo, gordura e preguiça. Isso que o governo deveria dizer ao povo, ao invés de gastar dinheiro com propaganda contra o fumo.

(...)

O ceticismo em relação a tudo que viu o aproximou da teosofia e o fez se filiar à SBE (Sociedade Brasileira de Eubiose) - da qual hoje já desligado -, criada pelo teósofo brasileiro Henrique José de Souza. “O homem é um ser mental, que pode canalizar suas forças interiores para a prática de atos que modifiquem seu redor”, profetiza. Ele conta que participando desse movimento estudou várias religiões e chegou a conclusões de que todas emergem de um mesmo tronco, mas têm sua base nessa força interior do homem.
Lembra de ter visto um homem com tais poderes quando menino em sua fazenda, e que, sabendo controlá-los, com um simples olhar fazia uma cobra ficar estática! Diz que esse magnetismo pessoal faz com que certos homens se destaquem e sejam, às vezes, confundidos com seres divinos. “Jesus Cristo era um ser especial, mas não acredito no dom divino que lhe foi conferido e propagado pela religião que se criou em torno dele. Ele tinha dons especiais que sabia canalizar para levar uma mensagem de fé e de esperança para seu povo”, afirma.
Nesse contexto, depois de horas de um bate-papo gostoso, porque não acreditar que o velho Eymar encarne a própria Matinta Perera?
No Pouso Alto, um velho sábio, já deitado em sua rede, fuma de olho em seus laranjais e antes que eu me despeça me chama da janela para relembrar, com seu ar carismático e brincalhão: “Quero que o resto se f...”.
Acredito estar vendo a própria Matinta olhando pra mim...
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(*) Artigo inserido em minha coluna Perípatos em 11.04.2008, publicada no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará.